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produtores audiovisuais tomam conta de suas narrativas

COM A VERBA DO PROGRAMA MUNICIPAL DE ESTÍMULO À CULTURA CONGELADA DESDE 2008, PRODUTORES ENCONTRAM DIFICULDADES EM FINANCIAR SEUS PROJETOS

por michelly neris

Seja para mostrar os conflitos de uma família que vive no campo ou os desafios que os estudantes com deficiência enfrentam na escola, o audiovisual oferece infinitas narrativas. Quem assume o papel de contar essas histórias através das telas, se depara com alguns desafios para produção local, mas também encontra uma rede de apoio.

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O coletivo de produtores audiovisuais nasceu em 2019, com o objetivo de compartilhar experiências, conhecimento e fomentar o mercado em Bauru. Das reuniões quinzenais no SESC, surgiram iniciativas de atuação política e cultural, como a produção da 3ª Edição do Festival Filma Bauru e ações para reescrever o Programa Municipal de Estímulo à Cultura de Bauru (PEC).

Não_me_esqueci_de_você.jpg
TRECHO DO DOCUMENTÁRIO
Não Me Esqueci de Você
QUE MOSTRA OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
(DIVULGAÇÃO)

Ana Heloíza Pessotto, integrante do coletivo e pesquisadora na área de políticas públicas em audiovisual, explica que essa articulação é essencial para o fortalecimento do setor. “Existem alguns passos para o desenvolvimento de uma aglomeração cultural, entre eles estão, o reconhecimento dos pares e  da própria região. Um arranjo produtivo nasce quando a própria cidade consegue incorporar isso, reconhecer essa movimentação e usufruir dessa produção”. 

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No final de maio, os integrantes do grupo lançaram a Cinemateca Digital Bauruense, projeto realizado através do Programa de Ação Cultural (ProAC). A Cinemateca tem o propósito de acomodar obras audiovisuais locais e levantar dados que ajudem a entender quais são as características dessa produção e quem são esses produtores, disponibilizando esses dados para consulta. Outro ponto trabalhado no projeto é a possibilidade do acesso a essas obras pela população bauruense.

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“Um dos objetivos da Cinemateca é estar alocado no site da Secretaria de Cultura e ter acesso a todas as bibliotecas de Bauru e que uma biblioteca ramal receba um kit com projetor para exibir essas obras. Faz parte de um plano para desenvolver o audiovisual na cidade e pleitear uma vaga de arranjo produtivo local [APL] no setor audiovisual”, explica Ana Heloíza.

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O jornalista e integrante do grupo, Rene Lopez também está envolvido na criação da Cinemateca. Ele conta que Bauru foi a primeira cidade do interior da América Latina a receber uma emissora de TV e que isso reflete até hoje na produção audiovisual. A cidade tem algumas emissoras já consagradas, mas a produção no cinema ainda precisa se  desenvolver.

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Para ele, o setor tem um grande potencial, uma vez que a região possui centros universitários e mão de obra qualificada. Porém, a cidade precisa estruturar um processo de produção mais complexo e os produtores ainda estão aprendendo a lidar com as técnicas e práticas de captação de recursos.

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“Nos grandes centros existem indústrias, que atuam há muito tempo, as metodologias de fomento são muito ativas e as pessoas sabem trabalhar com processos envolvendo outras produtoras associadas e parceiras. Em Bauru, as coisas são feitas de maneira muito independente, não há uma troca de informação, nem uma potencialização do que aquele produto poderia se tornar”, aponta.

Entre as principais pautas do grupo, está a melhoria no Programa Municipal de Estímulo à Cultura de Bauru (PEC). O programa é uma das principais formas de captar recursos na cidade, o debate gira em torno do valor do recurso e a forma de captação permitida. Desde que foi criada, em 2008, a verba se manteve a mesma: R$ 10 mil para pessoas físicas e R$ 20 mil para pessoas jurídicas.

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“O valor esteve congelado desde 2008 e a inflação, não. Outro ponto é que fundar uma associação acaba sendo caro também. Do jeito como a Lei está hoje, ela não prevê que um MEI (Microempreendedor Individual) ou um ME (Microempresa) possa inscrever um projeto, precisa ser uma associação ou uma fundação. Então, não seria a melhor forma de fomentar projetos de pessoas jurídicas”, aponta René.

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Em 2018, o jornalista lançou um documentário Não me Esqueci de Você sobre acessibilidade na educação, realizado através de recursos da PEC. A produção envolveu a participação de 9 profissionais e a verba, descontando os impostos, ficou em cerca de R$ 8 mil. Para finalizar a produção, Rene contou com patrocínio de uma empresa privada. “Eu entendendo que ele (PEC) é essencial para auxiliar quem está começando e atuar como mais um dos incentivos de uma produção. Produzir audiovisual custa caro e esses valores são muito pequenos”.

Ressentimento.jpg
Ressentimento
NARRA OS CONFLITOS DE UMA FAMÍLIA DA ZONA RURAL DO INTERIOR PAULISTA
 (DIVULGAÇÃO)

O curta-metragem Ressentimento também foi escrito para o edital do PEC. Mariana Vita e Denis Augusto, idealizadores do projeto, esperavam  passar por alguns ‘perrengues’, mas não foi aprovado. Eles resolveram tentar de novo quando o Programa de Ação Cultural (ProAC) abriu edital para projetos de curta-metragem e foram aprovados. Como o edital oferecia um recurso maior, eles resolveram fazer um longa-metragem. A produção do filme envolveu uma equipe técnica com 18 profissionais e 6 atores no elenco.

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“Na época, a verba era de 87 mil. Esse valor ainda é baixo se você parar pra pensar no tamanho de uma equipe de cinema, na remuneração adequada e nos gastos com alimentação e locação. Mesmo assim, o filme já tinha sido pensado para um orçamento mais baixo.  Então, a gente aproveitou essa verba e desenvolvemos o roteiro para fazer um longa também”, explica Mariana.

O Programa de Ação Cultural é uma legislação do Estado de São Paulo criada em 2006 e dividida em duas modalidades. No ProAC Editais, a verba provém do orçamento da Secretaria de Cultura do Estado. Nesta categoria, pelo menos 50% dos projetos selecionados devem ser do interior. Já no ProAC ICMS, os recursos são captados através de patrocínios incentivados e renúncia fiscal de empresas. 

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Com essa cota de 50%, o programa se tornou um mecanismo essencial de fomento do trabalho artístico e cultural no interior. Porém, no final de 2019, o orçamento do Estado previa um corte de 55% no ProAC Editais. Procurando lutar contra essa contenção e criar oportunidades para quem produz, foi criado o Fórum de Cinema do Interior Paulista (ICine). Mariana atua no grupo desde sua criação e explica como foi a mobilização na Alesp.

Associações citadas: API (Associação das Produtoras Independentes) e APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro)

Além da atuação política, o ICine também estimula um intercâmbio cultural entre as cidades. Com membros em 32 municípios, foi possível criar uma rede de cineclubes locais que promove a circulação das produções entre as cidades.

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Outro ponto que o ICine vinha trabalhando, é a circulação comercial. Grande parte das obras produzidas pelo interior não chegam às salas comerciais. Mariana conta que eles estavam se reunindo com exibidores de várias cidades para tentar exibir essas obras nas salas de cinema, contudo as negociações foram interrompidas por conta da pandemia. 

NO CENÁRIO NACIONAL: MAIS DESAFIOS

Mapeamento  e Impacto  Econômico do Setor Audiovisual no Brasil (2016) revela que, entre 2009 e 2014, o país registrou um crescimento de 138,7%, nos recursos públicos federais liberados para a produção audiovisual, que foram de R$149,1 milhões para R$356 milhões. Cerca de 78% desses recursos vieram de forma indireta, 18,6% foram liberados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

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Administrado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), o FSA foi criado pela Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006. O fundo atua no estímulo à produção de obras independentes do cinema e da televisão e na distribuição dessas produções.

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Desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, sem partido, a Ancine vem vivendo um cenário de incertezas. O Presidente chegou a falar em filtrar as obras selecionadas pelo órgão. Em julho de 2019, um decreto transferiu o Conselho Superior de Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. O documento ainda alterou a composição do conselho, que passou a comportar um número maior de integrantes do governo do que de nomes ligados ao cinema.

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Mariana Vita conta que essas mudanças impactaram nos editais estaduais e na produção no interior. “Em 2020, muitas produções foram paradas por causa da pandemia, mas desde o início do governo, isso vem acontecendo. A gente vê uma disputa muito maior por espaço no ProAC. Com toda essa crise da Ancine, associações maiores estão começando a se movimentar para ocupar esse espaço, que era tradicionalmente ocupado por produtoras menores”.

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Para além do incentivo financeiro, o setor ainda enfrenta as desigualdades de oportunidades na frente e atrás das câmeras.  Ana Heloiza Pessotto analisou em sua pesquisa de mestrado como as  obras exibidas na TV por assinatura promoviam a diversidade cultural e estimulavam a produção independente e regional, parâmetros previstos na Lei 12.485/11.

audiovisual em números

perfil dos diretores

75,4%

Homens brancos

19,7%

Mulheres brancas

2,1%

Homens negros

0%

Mulheres negras

no elenco principal

48,5%

Homens brancos

32,7%

Mulheres brancas

8,4%

Homens negros

5%

Mulheres negras

0,2%

Homens amarelos

0,2%

Mulheres amarelas

Ela descobriu que, assim como no cinema, a maioria das obras era dirigidas por homens brancos. “Eu percebi as características dos diretores se refletiam no conteúdo e nos protagonistas. As mulheres são a maioria nas salas em formação e dentro das produtoras, mas são minoria quando se considera linhas de liderança criativa”.

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Outro ponto observado pela pesquisadora  é que as produções estavam concentradas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Característica que também não fica restrita à TV paga. De acordo com o Mapeamento  e Impacto  Econômico do Setor Audiovisual no Brasil (2016), das obras lançadas entre 2008 e 2015, 42,9% eram do Rio de Janeiro e 36,1% de São Paulo.

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Pessotto pontua que isso acontece porque a produção e distribuição de uma obra custa muito caro e que as regiões mais ricas acabam tendo mais acesso e oportunidades. Para ela, é nesse ponto que as políticas  públicas devem atuar.

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“É papel do Estado oferecer educação e cultura para os cidadãos. Quando o próprio mercado gerencia, o país é invadido por obras norte americanas, por conteúdo internacional hegemônico. Ou, a própria produção brasileira fica restrita a grandes grupos de mídias, como a Globo”, explica.

No Brasil, a participação do público em títulos nacionais é de 14,8%

Já nos Estados Unidos, a participação do público em filmes produzidos no país é de 92,9%

nada a perder - 2   lugar

o

os farofeiros - 17   lugar

o

fala sério, mãe! - 19   lugar

o

Dos 20 títulos mais lucrativos de 2018, apenas 3 eram brasileiros, o restante do ranking é ocupado por filmes estadunidenses

O Ministério da Cultura (MinC) atuava fortemente na promoção da diversidade cultural e regional, estabelecendo cotas em seus editais. Mas o governo Bolsonaro extinguiu o MinC e, depois, o substituiu por uma Secretaria de Cultura.  Para Ana Heloiza, esta perda impactou a forma como o setor se desenvolve.

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“As políticas culturais, além de gerar emprego e desenvolvimento econômico, geram desenvolvimento social. O enfraquecimento das políticas públicas, desses processos, está gerando um enfraquecimento do setor. Não vejo como o audiovisual consegue atuar de forma diversa, mantendo qualidade sem as políticas públicas”.

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As políticas públicas são essenciais para o fomento da produção e diminuição das desigualdades sociais e regionais. Diante de uma PEC desatualizada, incertezas quanto às políticas estaduais e nacionais, e o avanço de uma pandemia que paralisou as atividades da área, produtores de Bauru e do interior paulista buscam se aproximar para coordenar suas ações. Criar audiovisual é custoso, mas o setor pode oferecer um grande retorno econômico e social para a região.

Cria Bauru | Reportagem multimídia produzida como Trabalho de Conclusão de Curso | Jornalismo pela UNESP | 2020

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